"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar".
(Eduardo Galeano)

Nem Direitos Nem Humanos

Há mais de meio século as Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, e não há documento internacional mais citado e elogiado.

Não é criticar por criticar: nessa altura, parece-me evidente que à Declaração falta muito mais do que aquilo que tem. Por exemplo, ali não figura o mais elementar dos direitos, o direito de respirar, que se tornou impraticável neste mundo onde os pássaros tossem. Nem figura o direito de caminhar, que já passou à categoria de façanha, ao remanescerem apenas duas classes de caminhantes, os ligeiros e os mortos. E tampouco figura o direito à indignação, que é o menos que a dignidade humana pode exigir quando condenada a ser indigna; e nem o direito de lutar por outro mundo possível, ao tornar-se impossível o mundo tal qual é.

Nos trinta artigos da Declaração, a palavra liberdade é a que mais se repete. A liberdade de trabalhar, receber salário justo e fundar sindicatos, para exemplificar, está garantida no artigo 23. Mas são cada vez mais numerosos os trabalhadores que, hoje em dia, não têm sequer a liberdade de escolher o tempero com que serão devorados. Os empregos duram menos do que um suspiro, e o medo obriga a calar e obedecer: salários mais baixos, horários mais dilatados, e lá para as calendas vão as férias pagas, a aposentadoria, a assistência social e demais direitos que todos temos, conforme asseguram os artigos 22, 24 e 25. As instituições financeiras internacionais, as Meninas Superpoderosas do mundo contemporâneo, impõem a "flexibilização da legislação trabalhista", eufemismo que designa o sepultamento de dois séculos de conquistas operárias. E as grandes empresas internacionais exigem acordos union free, livre de sindicatos, nos países que competem entre si para oferecer mão-de-obra submissa e barata. "Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão", adverte o artigo 4. Menos mal.

Não figura na lista o direito humano de desfrutar os bens naturais, terra, água, ar, e de defendê-los contra qualquer ameaça. Tampouco figura o direito suicida de exterminar a natureza, exercitado com entusiasmo pelos países que compraram o planeta e estão a devorá-lo. Os demais países pagam a conta. Num mundo que tem o costume de condenar as vítimas, a natureza leva a culpa dos crimes que contra ela são cometidos.

"Toda pessoa tem o direito de circular livremente", afirma o artigo 13. Circular, sim. Entrar, não. As portas dos países ricos se fecham nos narizes de milhões de fugitivos que peregrinam do sul para o norte, e do leste para oeste, fugindo das lavouras aniquiladas, dos rios envenenados, das florestas arrasadas, dos mercados despóticos e dos salários nanicos. Uns quantos morrem na tentativa, mas outros conseguem se esgueirar por baixo da porta. E lá dentro, na terra prometida, eles são os menos livres e os menos iguais.

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, diz o artigo 1. Que nasçam, vá lá, mas poucos minutos depois já se faz o reparte. O artigo 28 estabelece que "todos temos direito a uma justa ordem social e internacional". As mesmas Nações Unidas nos informam, em suas estatísticas, que quanto mais progride o progresso, menos justo se torna. A partilha dos pães e dos peixes é muito mais injusta nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha do que em Bangladesh ou em Ruanda. E na ordem internacional, os numerozinhos das Nações Unidas também revelam que dez pessoas possuem mais riqueza do que toda a riqueza produzida por 54 países juntos. Dois terços da humanidade sobrevivem com menos de dois dólares diários, e a distância entre os que têm e os que precisam triplicou desde a assinatura da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Cresce a desigualdade e para salvaguardá-la crescem os gastos militares. Obscenas fortunas alimentam a febre guerreira e promovem a invenção de demônios para justificá-la. O artigo 11 nos garante que toda pessoa é inocente enquanto não se prove o contrário. Do jeito que vão as coisas, daqui a pouco será culpada de terrorismo qualquer pessoa que não caminhe de joelhos, ainda que se prove o contrário.

A economia de guerra multiplica a prosperidade dos prósperos e cumpre funções de intimidação e castigo. Ao mesmo tempo, irradia sobre o mundo uma cultura militar que sacraliza a violência exercida contra aquela gente "diferente", que o racismo reduz à categoria de subgente. Ninguém poderá ser discriminado por seu sexo, raça, religião ou qualquer outra condição, adverte o artigo2, mas as novas superproduções de Hollywood, ditadas pelo Pentágono para glorificar as aventuras imperiais, pregam um racismo clamoroso que herda as piores tradições do cinema. E não só do cinema. Há poucos dias, por acaso, caiu em minhas mãos uma revista das Nações Unidas, de novembro de 86, edição em inglês do Correio da UNESCO. Ali fiquei sabendo que um antigo cosmógrafo escrevera que os indígenas das Américas tinham pele azul e a cabeça quadrada. Chamava-se, acredite-se ou não, John of Holywood.

Eduardo Galeano

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