"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar".
(Eduardo Galeano)

Retorno das atividades - 24/08/09

As atividades desta oficina (e deste blog) foram interrompidas temporariamente porque estive afastada por motivos de saúde durante este período. Fiquei muito feliz em retornar ao CIAP hoje e ser questionada por todos os adolescentes que encontrei sobre o retorno da oficina. Ótimo sinal!
Durante minha licença, enquanto pesquisava novos textos para discutir com os educandos, comecei a ler o livro "Cartas da Prisão", escrito por Frei Betto no período em que esteve preso durante a ditadura militar no Brasil. Ele ficou preso por quatro anos e escreveu também o famoso "Batismo de sangue", livro que retrata o período da ditadura e sua prisão e que há pouco tempo foi adaptado para o cinema sob a direção de Helvécio Ratton. Lindíssimo filme!
Voltando ao "Cartas da Prisão"... achei-o sensacional! Nele encontrei textos que falam sobre educação, política, reeducação de presos, capitalismo, etc. Os textos são curtos, escritos com muita informalidade e simplicidade facilitando a compreenssão.
Amanhã reinicio já com novo texto que traz as impressões do autor sobre quem são so presos comuns. Deixo-o aqui para degustação...


13/08/72

(...) A cada dia caminho um pouco mais dentro do universo do preso comum, que me era inteiramente desconhecido. Estar aqui é estar em nível abaixo daquele em que o povo se situa. Essa subclasse de tal modo é marginalizada da sociedade que lhe faltam mesmo os critérios mínimos de avaliação moral padronizada pela ideologia dominante. Jamais teve a consciência impregnada de valores éticos habituais. Desconhece por completo a linha divisória entre o real e o fantástico.

A maioria desses companheiros de infortúnio é acusada de homicídio e roubo. No dialogo há um momento em que decidem contar o seu crime: é um sinal de confiança. Confesso que ouço coisas que ainda ferem minha sensibilidade, que eu julgava curtida pelos anos de prisão. Ontem em me contou que foi assaltar um casal de velhos e nada encontrando de valor ficou de tal modo revoltado que obrigou o casal a se despir e violentou tanto a mulher como o homem. Descritos em detalhes e com realismo fatos como estes impressionam, mas sobretudo nos questionam: os homens chegaram a tal nível de alienação que não apenas confundem o real com o fantástico como também tornaram o fantástico realidade. Isto melhor se configura na espiral de violência qua assola nosso século.

Nesses presos se refletem, de forma aguda,as contradições sociais. São rebotalhos de nossa sociedade, o que de pior ela soube produzir e a camada a que pertencem só encontra similar no extremo oposto da estrutura social: a elite. Elite e o subproletariado caracterizam-se pela ociosidade e marginalidade de seus membros, violência de seus métodos de sobrevivência, esterilidade intelectual, carência de padrões, de consciência critica e de perspectiva histórica. Na expressão de Ortega, têm vida apenas como processo biológico e não como processo biográfico. O que as diferencia é o fato de a primeira situar-se no cume da pirâmide social como detentora do poder e a segunda situar-se na base, abaixo da superfície, como a camada mais oprimida, desprovida inclusive de qualquer resquício de consciência de classe.

Entre seus membros predomina o mais exacerbado individualismo, são incapazes de se unir mesmo em função de seus interesses fundamentais e nada tem a perder. Nenhum desses marginais detém qualquer atributo que caracteriza as pessoas socialmente integradas: posses, títulos, formação intelectual e profissional. Nem o sistema penitenciário lhes concede isso,mesmo que passem aqui vinte anos. São todos semi-analfabetos, oriundos de meio social pobre e em geral ingressaram no crime quando menores. (Dizem que para se diplomar no crime o malandro tem que fazer o primário no reformatório, o ginasial na cadeia publica e o nível superior na penitenciária...)

Não possuem nenhuma maldade inata, embora a pedagogia penal não se tenha libertado totalmente da influência lombrosiana. O que houve foi falta de oportunidade de integração no sistema, restando-lhes a via ilusória e arriscada do crime.

As contradições sociais atingem o paroxismo nesses homens porque, se de um lado o sistema quer fazer crer que todos nascem com iguais direitos, por outro eles sabem que de fato suas oportunidades foram mínimas, para não dizer nulas. A possibilidade de uma vida honesta, dentro dos padrões atuais, reduzida. O mercado de trabalho esta inflacionado e à mão de obra não especializada não resta outra alternativa senão o salário de fome, o rosário de dívidas, a instabilidade profissional.

Seja qual for a razão que um pivete atribui ao fato de portar uma arma e assaltar, é certo que ele não está matriculado numa escola ou empregado numa firma. À sua miséria e desamparo acresce-se a ociosidade, que lhe permite absorver a fantasia, extrato da cultura de massa, em condições de torna-la realidade. A moral social não permite que um homem tire a vida de outro, que uma mulher fique nua em publico, que a juventude se refugie no tóxico. Contudo defensores dessa mesma moral permitem e subvencionam a fantasia social divulgada por filmes, programas de televisão, fotos e publicações, onde o ser humano é apresentado como agressor e agredido, despido e ridicularizado, erotizado e drogado.

Tais estímulos penetram tão profundamente no inconsciente coletivo, que o homem passa a não poder viver em uma maneira de satisfazê-los. A elite tem suas orgias, suas aventuras e seus crimes camuflados pela própria ideologia que ela impõe. O subproletário age com menos requinte e inteligência e por uma necessidade de sobrevivência física. De um modo ou de outro somos todos responsáveis e cúmplices por coexistir numa sociedade que produz tais homens.

Não vou me estender, quero apenas registrar impressões, que poderão ser aprofundadas pelos psicólogos da comunidade (aqui eles teriam um vastíssimo campo de pesquisa). (Mas não estou sugerindo que cometam um crime ou ponham em risco a segurança nacional!...)

Frei Betto – Cartas da Prisão