"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar".
(Eduardo Galeano)

A oficina de outubro – 06/10/09


Dando seqüência à leitura das cartas de Frei Betto, iniciamos o mês de outubro com um novo texto. O texto anterior era uma reflexão sobre o preso comum e este mostra um retrato do regime penitenciário sob um governo militar. A partir da leitura deste podemos analisar quais as semelhanças entre o regime de outrora e o atual. Também podemos fazer um paralelo e discutir a eficácia da medida sócio-educativa de internação, suas vantagens e desvantagens, erros e acertos. Além de todas as outras possibilidades de discussão como as causas sociais do crime, a crueldade do sistema capitalista, etc. Um banquete para alimentar a oficina "de" palavras.


 Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, cela 42 do 1º raio, julho, 30/72

(...) fica sem resposta positiva a questão fundamental: o regime penitenciário recupera o preso comum? De modo geral não, mas apenas concede a ele um longo período de férias de suas atividades delituosas. Quando não funciona como um curso de pós-graduação. A única eficácia desse regime penitenciário é a de afastar determinado criminoso do contato com a sociedade e da oportunidade de reincidência – por algum tempo. Ele nem recupera o homem, nem reduz o índice de criminalidade. Por culpa de quem? Por culpa da ordem social da qual o sistema penitenciário é reflexo. Infelizmente os projetos educacionais do Estado esqueceram as penitenciárias e um homem que está aqui há oito anos não terá passado do terceiro ano primário (nem ao menos o diploma do primário é possível obter aqui, quando o mínino desejável seria que esses presos, muitos condenados a mais de vinte anos, pudessem cursar até o terceiro colegial ou algo correspondente, no nível industrial). O mesmo ocorre em relação à qualificação profissional – impossível sair daqui com um certificado de tempo de serviço ou especialização. Em outras palavras, todos saem daqui como entraram – sem nenhum título, embora dispondo de tempo e condições pessoais para adquirir as mais diversas habilitações.
Mesmo que o detento saia disposto a trabalhar e jamais retornar ao crime, ele enfrentará aí fora, por causa de seu passado, toda sorte de dificuldades. Por incrível que pareça, não são todas as penitenciárias que permitem ao preso retornar à liberdade de posse de seus documentos de identificação (neste ponto esta aqui é uma exceção). O sujeito sai e poucos dias depois é preso como vadio por uma ronda policial, pois ninguém ignora como é demorado se obter qualquer papel no Brasil. A coisa chega a tal ponto, que conheci vários presos correcionais condenados ao crime porque não conseguiram emprego por falta de documentos e a polícia não lhes fornecia documentos enquanto não provassem que estavam trabalhando. É muito difícil, com a excessiva oferta e o reduzido valor da mão-de-obra no Brasil, um empregador contratar um ex-presidiário. Quando o faz é porque este possui "pistolão", alguém conhecido que se responsabilize por ele. Na Penitenciária de São Paulo, o SENAI fornece diploma sem constar onde foi feito o curso, tantas são as prevenções contra o ex-presidiário. Muitos patrões, quando descobrem o empregado que passou por uma cadeia, tratam de despedi-lo. Foi o caso de José Gilberto, que estava muito bem como funcionário de um famoso clube paulista, até que houve um roubo lá dentro. Incluído na primeira relação de suspeitos, nada foi provado contra ele, mas mesmo assim foi despedido com a clássica frase: "Vá brigar pelos seus direitos na Justiça do Trabalho". Como evitar a revolta e o retorno ao crime de uma pessoa dessas, sobretudo quando não lhe resta outro meio de sobrevivência?
Um preso pode se recuperar na prisão, mas é muito difícil ele ser reassumido pela sociedade. A começar pela própria família. Quantos não são abandonados pela mulher, incapaz de suportar a castidade involuntária? Dentro do sistema penitenciário atual os critérios de recuperação podem ser facilmente burlados. Trabalhar, ter bom comportamento, demonstrar arrependimento, são atitudes que o preso pode assumir com o objetivo de encurtar sua pena e regressar à rua para cometer novos crimes. Por outro lado, ele pode estar realmente recuperado, envergonhado de seu passado, disposto a adaptar-se à engrenagem social, mas ser tido dentro da penitenciária como elementos perigosos e indisciplinado pelo simples fato de evitar conversas com os guardas ou reclamar das condições carcerárias.
Não são muitas as pessoas, entre juristas, juízes e advogados, que consideram aceitáveis para os nossos tempos os sistemas processual, penal e penitenciário brasileiros. Um homem condenado a vinte anos pode estar recuperado na metade da pena, e degenerado no momento em que a lei determina sua volta à liberdade. A falta de verba obriga toda sorte de improvisações no cárcere e impede que sejam criadas condições mínimas de reeducação dos presos. Os regulamentos são arcaicos e só servem para alimentar ressentimentos e ódios. Não há uma pedagogia carcerária definida em diretrizes básicas. O emperramento burocrático é tal que a filosofia predominante é a do "deixe como está para ver como é que fica".
Qual seria, na minha opinião de presidiário, a solução mínima? É quase inútil por remendo novo em pano velho. São as causas sociais do crime que precisam ser atacadas. De nada adianta construir cadeias. Deve-se edificar uma sociedade capaz de erradicar os focos geradores de criminalidade, como a miséria, o analfabetismo, o trabalho mal remunerado, o desnível entre oferta e procura de mão-de-obra, etc. Entretanto, enquanto perdura a longa agonia de nossa decadente sociedade, uma solução mínima para o regime penitenciário exigiria verbas assombrosas e pessoal altamente especializado – se o objetivo for realmente ajudar esses homens aqui a se reeducarem, segundo o padrão social vigente. Isto significa possibilidade de o detento reeducar-se na liberdade, pela eliminação de todos os fatores coibitivos (rompimento de seus bloqueios afetivos, psíquicos, intelectuais e espirituais) e oferecimento de condições par o cultivo e expansão de suas potencialidades humanas. Portanto, soltar o detento na rua não seria a melhor solução mínima. Provavelmente significaria seu retorno aos focos de criminalidade. (...)

Frei Betto – Cartas da Prisão

RESPOSTAS AO E-MAIL DO EDUCADOR ANÔNIMO


Ana Paula, questionamentos em relação ao texto enviado anonimamente por algum "colega":
- A pessoa que enviou o texto diz "Quando você cita a falta de estrutura". Pelo que eu entendi você envia os textos que os adolescentes escreveram e não escreve por eles, certo? Portanto, o fato de enviar os textos escritos pelos menores não demonstra de maneira alguma a suposta dicotomia entre técnicos e monitores.
- A pessoa que escreveu não sabe o mínimo da língua portuguesa. Criminozo com "Z"? Ok, ninguém é obrigado a saber português, ao menos para fazer a pontuação mínima para concursos já que é para isso que as pessoas estudam mesmo (isso foi uma ironia). Falar mal de quem escreve errado seria errado também.
- Uma pergunta a pessoa que escreveu o texto para você: como os adolescentes deveriam ser tratados? A impressão que eu tenho é que apenas o Código Penal serve para tratar de pessoas que cometeram algo que
legisladores antigos disseram ser o errado. E, se o Código Penal está certo e não o ECA, por que as cadeias de adultos estão lotadas e POR QUE OS ADULTOS COMETEM CRIMES?
- Por que a pessoa que enviou o texto se incomoda com o seu trabalho? Ela sabe exatamente o que você faz? Por que não faz ou sugere o que seria o certo então, em vez de apenas criticar?
Portanto, se você conseguiu enxergar positividade no email do "colega", parabéns. Continue com o seu trabalho que eu admiro tanto.
Letícia Bonfim


"Acorda prá vida, se põe de pé ... a verdade prá nós já amanheceu.
"Não poderia deixar de expressar minhas idéias diante da situação que temos vivenciado: a manifestação de um pensamento ainda pautado no paradigma correcional-repressivo que vigorou durante algumas décadas, mas que felizmente já não encontra ressonância nos dias atuais, pois estamos consolidando  uma sociedade de direitos. Ao ler a mensagem anônima apenas nos defrontamos com um profissional que ainda não se deu conta de que adolescentes, por serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, devem ser tratados de uma maneira diferenciada em relação aos adultos. Não é por acaso que os delitos que cometem não são configurados como crimes, mas atos infracionais. Certamente o profissional tem dificuldades de compreender que a medida socioeducativa deve realizar a reeducação dos adolescentes que estão circunstancialmente em conflito com a lei. Circunstancialmente, porque não o estarão para todo o sempre! A questão é: até que ponto muitos dos profissionais que atuam com estes adolescentes o compreendem na sua individualidade, entendem o processo social que leva pessoas em tenra idade a infringir as normas postas para o conjunto da sociedade? Em que medida os profissionais em nosso contexto se identificam com a perspectiva da reeducação?A verdade que já amanheceu é que já não há espaço para pessoas que continuam pensando de maneira repressiva ... enfrentamos o desafio de tornar a humanidade mais humana ... de nos humanizar ... nossas idéias e atitudes ...
Shirley Rizzi - Assistente Social - Assessora da Direção do CIAP

REFLEXÕES DE UM EDUCADOR ANÔNIMO - 01/10/09

Para de sonhar Ana Paula.
Essas histórias que vc manda de vez em quando me fazem rir (monitores maus, técnicos(as) bonzinhos).
Acorda... a grande maioria desses jovens não tiveram oportunidade eu sei, contudo não é motivo para fazerem as atrocidades que fazem, fazem tudo porque têm a consciência de que nada lhes acontece.

Quando vc cita a falta de estrutura familiar sem dúvidas muitos de nós concordamos, em partes, mas eu gostaria que vc comentasse mesmo era sobre a realidade para esses adolescentes(criminozos), a consequência de seus atos, gostaria que os tratassem como deveriam ser tratados.
Para mudar é necessário investimentos na base de tudo isso.
Aqueles que estão presos(internados, cumprindo medida sócio-educativa(detesto esse nome) deveriam ser tratados como bandidos, aí sim eles pensariam bem antes de cometer outro crime, desculpe, ato infracional.
Pensa comigo: vc roubou um pão na padaria da esquina e ao chegar em casa sua mãe lhe falou assim: - filha vc não pode fazer isso, isso é feio, mas tudo bem estamos precisando mesmo... daqui a alguns dias vc repetirá a mesma delinquência ou não?????? te dou um doce se vc ADIVINHAR.
Acorda pra vida se põe de pé a verdade pra nós já amanheceu.( letras de uma música linda do
Grupo Semeando)



O texto acima foi enviado por um de nossos educadores que achou por bem não se identificar. Não acredito ter sido sua intenção, mas acabou sendo bastante colaborativo. Sua visão do delito e do adolescente nos mostra quem são e como pensam muitos de nossos educadores.

Não podemos generalizar e acreditar que todos pensem desta maneira, mas também não podemos deixar de refletir sobre a influência e os efeitos que este tipo de abordagem possa ter dentro de uma unidade de internação.

Vivemos em uma sociedade cada vez mais alienada e contraditória, intelectualmente estéril, carente de padrões éticos, consciência crítica e perspectiva histórica. Se o processo sócio-educativo é essencialmente dialético, pois trata de entender as contradições da sociedade e defender uma posição, como esperar do agente sócio-educativo, fruto desta mesma sociedade, a construção de relações baseadas em valores éticos e solidários? Como iremos educar nossos educadores?